terça-feira, 20 de janeiro de 2009

TRANSPARECER....






(Um trecho de Pertencer )




Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço
a criança sente o ambiente, a criança quer:
nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer.
Por motivos que aqui não importam,
eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém.
Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, Como se fosse um destino.

A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira:

ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém,
é que me tornei bastante arisca:
tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre.
Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma.
E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente.
Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer"
começou a me invadir como heras num muro.

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer,
por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações?
Porque não é isso que eu chamo de pertencer.

O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom
de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço.
Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes.
E uma alegria solitária pode se tornar patética.
É como ficar com um presente todo embrulhado
em papel enfeitado de presente nas mãos

- e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o!
Não querendo me ver em situações patéticas e,
por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia,
raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo


ou a alguém mais forte.
Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim
de minha própria força
- eu quero pertencer para que minha força não seja inútil
e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço,
quase consigo reproduzir em mim a vaga
e no entanto premente sensação de precisar pertencer.
Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar,


eu nasci e fiquei apenas: nascida.


No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito.
Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada,
acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença.
Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança.
Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa:
fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei.
Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado.
Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão
e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdôo.

Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre:
eu nascer e curar minha mãe.
Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe.
Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer
porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga
que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer,
como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo.

E então eu soube:

pertencer é viver.

Experimentei-o com a sede de quem está no deserto

e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil.

E depois a sede volta

e é no deserto mesmo que caminho.



CLARICE LISPECTOR
...Cá estou. !

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